terça-feira, 15 de janeiro de 2013

Uma das primeiras nações a ter uma presidente também é o cenário de agressões públicas à condição feminina, como os recentes estupros em ônibus. As vítimas, que chegaram a 2,2 milhões em 2011, têm medo de denunciar os abusos


Indiana protesta contra o estupro de Jyoti, que foi violentada por seis homens e morreu 13 dias depois. A violência de gênero é comum no país que reserva 33% do parlamento às mulheres

“Eu nasci e cresci em Nova Dhéli, e posso dizer que, aqui, toda mulher de classe média é vítima de algum tipo de abuso em algum momento da vida.” O depoimento da professora da Universidade de Dhéli Monami Basu, de 37 anos, expõe a realidade das indianas que, apesar de bem educadas e independentes, se veem vulneráveis a crimes motivados por discriminação de gênero. A Índia foi um dos primeiros Estados a ter uma mulher ocupando a presidência e o cargo de primeira-ministra, e, em 1992, aprovou uma lei que prevê um sistema de cotas de um terço dos assentos parlamentares para as mulheres. Mesmo com os avanços políticos, pouco ou quase nada foi feito para garantir a segurança delas em suas casas e em ambientes públicos. Ontem, menos de um mês depois de a jovem Jyoti Singh Pandey ter sido estuprada por seis homens em um ônibus coletivo, a polícia indiana confirmou que uma agressão similar foi cometida, na última sexta-feira, no norte do país. A vítima de 29 anos foi atacada por sete homens. Seis estão presos.

Dados do Centro Internacional para Pesquisas sobre Mulheres (ICRW, da sigla em inglês), apontam o registro de mais de 2,2 milhões de casos de violência contra mulheres no país em 2011. Mas o número real de crimes pode ser muito maior, já que há no país uma cultura de não tornar pública uma agressão para evitar humilhações e pela desconfiança com relação ao trabalho da polícia. “Apesar das posições de destaque, a maioria das mulheres e homens educados acredita que o papel fundamental da mulher na sociedade é de cuidadora do lar”, explica o diretor do ICRW em Nova Délhi, Ravi Verma.


Contribui para isso o fato de diversas figuras públicas apontarem as mulheres como culpadas por induzirem ou permitirem a violência. Na última semana, um vídeo postado na internet chamou atenção por mostrar o guru Asharam, popular líder religioso do país, condenando Jyoti. “Essa tragédia não teria acontecido se ela tivesse evocado o nome de Deus e caído sobre os pés de seus agressores. O erro não foi cometido apenas de um lado”, disse ele.


Pronunciamentos como o do guru desencorajam as vítimas a procurarem ajuda, mas a desinformação pode ser ainda mais crítica. Em regiões isoladas, é comum as mulheres desconhecerem seus direitos e os mecanismos que podem ser acionados para buscar justiça. “Cerca de 60% da população vive em áreas rurais e a taxa de analfabetismo é relativamente alta. Então, não é fácil para essas mulheres denunciarem. Boa parte delas não sabe reconhecer que teve os direitos humanos desrespeitados”, analisa Anne Stenhammer, diretora regional da Entidade das Nações Unidas para a Igualdade de Gênero e o Empoderamento das Mulheres para a Ásia.


Desde a gestação

Exemplo disso é que cerca de 40% da população indiana considera justificável que um homem bata em sua mulher, de acordo com relatório Progresso das Mulheres no Mundo (2011-2012), organizado pela ONU Mulheres. “Em 2008, uma aluna da faculdade onde trabalho foi morta a tiros enquanto dirigia à noite. A ministra-chefe de Nova Délhi (Sheila Dikshit) foi a público e disse que a menina ‘não deveria ser tão aventureira’. As próprias mulheres no poder falam esses absurdos,” lamenta Monami Basu.

As diferenciações começam antes mesmo do nascimento, segundo Nandini Ray. Muitas família optam pelo aborto quando descobrem que esperam uma menina. Também abandonam ou matam recém-nascidas para evitar o que alguns consideram um fardo. “Há famílias que veem crianças do sexo masculino como vencedoras, enquanto as meninas são um encargo financeiro, uma vez que elas vão para a casa do marido com um dote considerável”, afirma a coordenadora de extensão do grupo Maitri, organização sem fins lucrativos baseada nos Estados Unidos que oferece apoio às asiáticas.


A taxa de nutrição e de escolaridade também são bastante desiguais. Mesmo em vilarejos e favelas, onde há pobreza generalizada e exposição geral a situações degradantes, os meninos crescem com o sentimento de que estão acima das irmãs, mães e tias. “Eles normalmente presenciaram incestos e estupros em suas casas e em grupos sociais (…). Crescem cercados de exemplos que os fazem pensar que as mulheres não merecem respeito”, avalia Monami.


Em uma sociedade altamente sexista, além de castista, o respeito pelos direitos humanos precisa ganhar um espaço maior e as leis internas precisam ser mais respeitadas, concordam os especialistas. “Eu acredito que, para assegurar os direitos das mulheres e um futuro melhor, precisamos ensinar cada menino e menina, ainda na infância, o valor da dignidade a fim de que prendam que todos os seres humanos merecem respeito”, afirma Abha Singhvi, uma das diretoras do Maitri.


Aos 72 anos

Pratibha Patil tomou posse em julho de 2007, quando tinha 72 anos. No sistema parlamentarista indiano, a presidência é um cargo mais protocolar, pois o governo é chefiado pelo primeiro-ministro. Essa função também já foi exercida por uma representante do sexo feminino. Indira Gandhi governou por dois longos períodos, de 1966 a 1977, e de 1980-1984. Filha de Jawaharlal Nehru, herói da independência indiana, ela foi assassinada em 1984 por dois guarda-costas da etnia sikhs.

Depoimentos



“Quando olho para as minhas alunas, vejo que as famílias estão dando a elas muito mais liberdade do que eu costumava ter. Na minha época, assim que a menina se graduava, a maioria das famílias tinha como primeira preocupação casá-la. (…) Mudanças estão acontecendo, mas são ainda muito lentas. Eu sempre digo para as minhas alunas: leiam, leiam e leiam. Lendo muito, você consegue entender o mundo. E entender superficialmente, não é bom o suficiente. Nós precisamos de uma geração de leitores, de gerações que tragam transformações”


Monami Basu, 37 anos, professora universitária




“Na Índia, se alguém fizer algo com você, sempre terá uma figura que te apontará como culpada e fará você se sentir envergonhada por isso. Eu sou uma mulher trabalhadora. Então, se sofresse violência em casa, sairia e reclamaria porque sei que sou independente. Se eu sofresse algum abuso, eu sei que minha posição me permitiria confrontar o crime e o abusador, é mais fácil para mim. Mas, se alguma coisa acontecesse com a minha empregada, por exemplo, ela não reclamaria”


Ruby Dhingra, 24 anos, produtora de televisão


Nova agressão em coletivo

Outro caso de estupro coletivo foi confirmado por autoridades indianas. Na última sexta, uma passageira de um ônibus foi violentada por sete homens no estado de Punjab, norte da Índia. A vítima de 29 anos era a única dentro do coletivo. Inicialmente, foi abusada sexualmente pelo motorista e pelo ajudante do homem. Depois, foi levada à força a uma casa e atacada por mais cinco pessoas. “Eles me mantiveram confinada por toda a noite e me forçaram a fazer o que quisessem”, disse a vítima em entrevista a uma afiliada da CNN. No sábado, seis pessoas foram presas acusadas de terem praticado o crime.

O estupro lembra o caso de Jyoti Singh Pandey, também atacada dentro de um ônibus, em Nova Délhi, no último dia 16. Violentada e agredida com uma barra de ferro, a jovem de 23 anos morreu 13 dias depois do ataque. O namorado dela presenciou a violência e foi jogado do veículo em movimento. O caso levou centenas de indiano às ruas em protesto contra a morte da jovem e repercutiu no resto do mundo. Cinco suspeitos foram presos e indiciados por homicídio, estupro e sequestro. Caso condenados, podem receber como punição a pena de morte.



Gabriela Walker - Correio Braziliense
Publicação: 14/01/2013 04:00

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